sábado, 16 de junho de 2007

Memórias, Imagens e Subdesenvolvimentos

Toda memória reivindica imagens. Seja como ícones, ou como outros símbolos visuais, as imagens - quando fortes - tornam-se traumáticas, fetiches, opacas, transparentes. Toda memória, quando eivada por lapsos, lacunas e esquecimentos, inocula uma busca paranóica pela imagem-síntese, a ‘imagem-tempo’.

É nesse contexto que as memórias dos acontecimentos históricos dos países subdesenvolvidos tornam-se singulares, pois são marcadas por cisões. Não há um traço linear, tampouco coerente; mas ciclos. Uma intermitência totalmente acoplada às características industriais de países onde o subdesenvolvimento não é uma etapa, um estágio, mas um estado (...). O cinema é incapaz de encontrar dentro de si energias que lhe permitem escapar à condenação do subdesenvolvimento . Cinema e subdesenvolvimento tramitariam num círculo vicioso. Um círculo onde o olvido e a lembrança, numa provável dialética com as imagens, pairam à mercê dessas inconstâncias.
Ao reunirmos filmes das décadas de sessenta e setenta de Glauber Rocha, Fernando Birri, Fernando Solanas, Octavio Getino, Patrício Guzmán, Miguel Littin, Tomás Gutiérrez Alea, Raymundo Gleyzer, Joaquim Pedro de Andrade, Eduardo Cotinho e Vladimir Carvalho, propomos um exercício de imaginação e reconstrução histórica. Compartilhamos memórias. Fragmentos e cacos de revoluções, revoltas, experimentos estéticos e posicionamentos políticos que inseriram a América Latina no cerne do debate mundial. Memórias que foram relegadas ao porão da história.
O recorte histórico que oferecemos é rico (e sofrido). Os golpes militares no Brasil e na Argentina eram apenas arrefecidos pela vibração que vinha da revolução cubana. Em seguida, a queda de Allende – outro golpe violento e simbólico, retratado com força em A Batalha do Chile, de Patrício Guzmán – é mais uma rasteira à autonomia dos potenciais culturais e políticos da América Latina.
Embora não sejam estritamente documentais, os filmes que selecionamos traçam um diálogo direto com esta conjuntura política. O teor histórico que resguardam é duplo: não documentam apenas aquele momento em que jorravam contradições e paradoxos das veias da América Latina; são intervenções, buscas por outras diretrizes históricas, alternativas àquelas impostas pelas ditaduras e pelo famoso bloqueio econômico.
A linha política que une a obra dos diretores mencionados não se restringe aos ideais socialistas, comunistas ou ‘revolucionários’ que singularizaram aquelas décadas. Essas ideologias são acompanhadas por uma atenção às expressões populares, à luta contra correntes hegemônicas e contra qualquer ameaça à soberania nacional. A América Latina é desnudada nos seus esplendores culturais; é engolida a palo seco frente às mazelas impelidas por séculos de colonização.
Há uma linha estética que também tece um parentesco entre estas películas latino-americanas. Na história do cinema ‘oficial’, narrada pelos centros hegemônicos de estudos de audiovisual, esses filmes não passam de herdeiros do neo-realismo italiano e da nouvelle vague francesa. São obras, no entanto, que apresentam algumas novidades relevantes e que demandam outros paradigmas interpretativos. Assim é o caso da realização conjunta dos filmes com índios quéchua encabeçada pelo grupo Ukamau, na Bolívia - uma novidade ímpar pelo ato de compartilhar a criação cinematográfica; a ampla utilização de alegorias como uma proposta de construção dramatúrgica; a busca de uma nova relação com o espectador, que se denominou de dialética e na América Latina ganhou matizes diferentes das preconizadas por Bertolt Brecht; uma compreensão política da história e que é uma característica peculiar destes cineastas e da sua geração. Essa novidade estética fica cristalina nos manifestos e ensaios por eles produzidos, dos quais trechos são publicados nesse catálogo.
Tais textos realçam as singularidades do fazer cinema na América Latina. A opção pela agressividade. A politização e a exploração estética das expressões populares, da religiosidade, dos conhecimentos tradicionais. A verve que recusa os modelos de roteiro, de decupagem e de personagem dos cinemas hegemônicos. A via do experimentalismo. Uma renovação de conceitos como classe, massa e povo, conceitos que passam à margem das especulações da nouvelle vague.
Estes cineastas assumiram o subdesenvolvimento como um ponto de partida para suas criações. Ele era lido como uma condição política. O termo subdesenvolvimento, aliás, tornou-se obsoleto. A globalização e o mundo contemporâneo passam uma mensagem, um simulacro, de convívio equilibrado entre países ricos, emergentes e pobres. Pouco importa o termo: seja ele ‘terceiro mundo’, ‘países em desenvolvimento’ ou ‘emergentes’, o contexto político e econômico que esses diretores perceberam e cantaram continua atual. E é por isso que optamos por manter o termo subdesenvolvimento: por desconstruir a falácia da inclusão preconizada pelos discursos da globalização.
A dificuldade que tivemos para localizar boa parte dos filmes que apresentamos é a principal prova da precariedade em que se encontra a memória audiovisual e cinematográfica da América Latina. Trabalhamos como arqueólogos para desvendarmos obras importantes, imprescindíveis, e que possuem, incrivelmente, menos de cinqüenta anos. Alguns dos filmes inicialmente planejados sequer puderam ser encontrados em Dvd, como Ukamau e Yawar Malku de Jorge Sanjinés. Cabe citar que muitos deles foram proibidos e/ou censurados por ditaduras (como La Hora de los Hornos e O País de São Saruê) - em alguns casos, tentaram apreendê-los e até queimá-los. A maioria dessas cópias, infelizmente, continua embalada por uma grossa camada de acetato e corre o constante perigo do desaparecimento.
Essas memórias do subdesenvolvimento não são desejadas. Elas persistem por pura teimosia. A melhor imagem que possa sintetizar essa sensação seja, talvez, a do fotógrafo Jorge Müler Silva, de A Batalha do Chile, a quem o filme é dedicado. Ao filmar a primeira tentativa de golpe no Chile, alguns meses antes da ascensão de Pinochet, sua câmera se fixou num policial enquanto este apontava a arma em sua direção: o cinegrafista não poderia estar ali; aquela cena não poderia ser filmada. Vem o disparo: a câmera treme. A câmera cai. A imagem é interrompida. Seu registro silenciado.
Jorge Müler Silva morre do mesmo modo que milhares de civis da América Latina (e por motivos semelhantes). Morre como os desaparecidos políticos, como muitos exilados. As ditaduras que marcaram por duas décadas este continente semearam o esquecimento e o silêncio. É hora de reivindicarmos o direito de interagirmos com essas memórias. De aprendermos com essas imagens. De debatermos nossos subdesenvolvimentos.

Pablo Gonçalo
(Curador)



4 comentários:

Ernesto Valença disse...

AÊ, Pablo!!!!!

Parabéns pela mostra, a primeira de uma série. Acho o recorte empolgante e gostei muito do texto também. Vou dar uma lida atenta no texto do Tomás Gutierrez pra ver se aperspectiva é tão diferente assim da de Brecht.

Imenso abraço,
Ernesto

Anônimo disse...

Eaee Pablooo...
ameeeeeeeeeeii

Anônimo disse...

Me chamou atenção no artigo a história de "Jorge Müller Silva", que segundo este texto de Pablo Gonçalo, teria filmado sua própria morte alguns meses antes da ascensão de Pinochet, sendo assassinado por um policial enquanto filmava a primeira tentativa de golpe no Chile. Buscando mais sobre o assunto na internet encontrei que Jorge Müller teria sido sequestrado, torturado e então assassinado. Gostaria de saber as fontes do autor ou se o nome do cinegrafista estaria trocado neste artigo.

Tatiana.

Anônimo disse...

parabéns pela mostra, a primeira de uma série. Acho o recorte empolgante e gostei muito do texto também. Vou dar uma lida atenta no texto do Tomás Gutierrez pra ver se aperspectiva é tão diferente assim da de Brecht.
thanks you!
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